
Sempre que um Papa morre pode existir no coração dos piores protestantes uma tentação de querer estragar as homenagens que lhe fazem. Sei do que falo porque pertenço a esse grupo. Quando soube da notícia, pedi a Deus pelo dom da moderação, tão raro em mim, e, depois de algum tempo, enviei um abraço a um par de amigos católicos chegados. Na enxurrada de discursos nas redes sociais, fiz por ficar calado. No fundo, acreditei que, ao evitar as declarações instantâneas da multidão, podia honrá-lo melhor do que as adorações apressadas.
Mas todos sabemos que um evangélico não sabe ficar calado. Cá estou eu a provar. O que é o melhor que posso escrever? Não sei bem mas vou tentar. A verdade é que, ao longo desta década e pouco em que Francisco foi Papa, fiz um esforço para acompanhar o seu ministério. Não foi perfeito mas foi sincero. Não estou a falar de colocar likes em fotos nem de replicar o eco das opiniões maioritárias. Como Max Weber intuiu, a “ética protestante” vê-se no trabalhinho e eu trabalhei lendo e ouvindo o Papa.
Dou cinco exemplos que encham os dedos da mão: li e tomei notas sobre a “Lumen Fidei” em 2013, li e tomei notas sobre uma Exortação Apostólica ainda nesse ano também, li e tomei notas sobre o “Laudato Si” em 2015, li e tomei notas sobre um discurso que o Papa fez sobre a evangelização aos judeus em 2016, e li e tomei notas sobre o “Fratelli Tutti” em 2020. Escapou-me muita coisa mas não me escapou tudo. O meu jeito de apreciar o Papa Francisco foi persegui-lo como um chatíssimo rato de biblioteca. Fui devoto do Sumo-Pontífice.
É assim que um protestante lida com o pastor de Roma. Deixem-me ilustrar o princípio que está em causa: o Martin Scorsese tinha razão quando dizia que os filmes da Marvel são parques de diversão e não cinema. Mas quero usar uma metáfora desse universo lúdico, de heróis e vilões. Quero usar a metáfora do superpoder. O superpoder dos protestantes é a leitura. Sempre que lêem, os protestantes são poderosos. Foi à custa desta valorização da leitura que o protestantismo modernizou o mundo.
Num mundo inundado em imagens, fotografias e vídeos, a leitura torna-se um superpoder ainda mais necessário. O Papa Francisco foi tão popular também porque nesse mundo imediato de visão os seus talentos eram inegáveis. Conversava, ria, improvisava, fugia do protocolo, era um mestre da espontaneidade. Num universo centrado no olhar, a espontaneidade é tratada como ouro e a reflexão como lixo. A reflexão exige que o fundamental aconteça além do olhar e, na falta de paciência para esperar por ela, suscita suspeita. Gente que pensa desconforta a multidão. Protesta.
O que há de especial em gostar do Papa por ele ser espontâneo? É algo até bem óbvio e barato. Mas dar-se ao trabalho de ler o que ele escrevia e ouvir o que discursava, isso sim, significa algo mais: talvez até amor. E eu, como protestante picuinhas, fiz por isso: talvez o tenha amado, ainda que raramente concordando com ele. Li-o e critiquei-o de coração cheio. Busquei no meu vocabulário da desavença a manifestação mais capaz do superpoder da leitura.
Quem sabe um pouco de história, sabe também que os Reformadores Protestantes demonstravam o seu coração sendo leitores ávidos—era na leitura que justificavam as reformas que faziam. Quem conhece Lutero, lê-o criticando os dogmas de Roma; quem lê Calvino, o mesmo. É-me indiferente falar sobre as características que fizeram de Francisco um fenómeno de popularidade porque, para isso, basta ter olhos na cara. É claro que Francisco devia ser a pessoa fantástica que parecia. Mas, como evangélico, queria ter olhos nos seus textos e discursos também: queria amá-lo de um modo distintamente protestante.
O que conclui dos textos e discursos de Francisco já falei noutras ocasiões. Interessa-me agora deixar claro que provavelmente amei Francisco mais do que os seus fãs. Os fãs de Francisco deram-lhe os olhos, os likes, os aplausos, os consensos, as banalidades das massas. Só eu sei o que lhe dei, em cada linha lida e sofrida pela emoção preciosa da discórdia. Estou certo: amei-o revoltadamente. Já sinto saudades dele.