
O problema da habitação está, muito justificadamente, no centro do debate político. Sobre o tema há dois consensos: o primeiro é que faltam casas no mercado, o que tem feito inflacionar os preços; o segundo é que o Estado deverá ter um papel relevante na resolução do problema como promotor de construção.
O primeiro é um facto inquestionável, independentemente das diferentes opiniões que possa haver sobre as causas da escassez de oferta. O segundo é um desejo que está muito longe de se concretizar.
Tal como a Saúde ou a Educação, a habitação é um dos bens sociais onde o Estado deve ter um papel fundamental, garantindo que toda a gente tem uma casa condigna. Isso pode ser feito com medidas de três grandes grupos: o Estado constrói habitação pública que cede a pessoas que, comprovadamente, não possuem rendimentos para conseguir uma habitação de outro modo; o Estado incentiva a construção ou recuperação de imóveis por privados; ou o Estado subsidia directamente as pessoas para que possam suportar os custos de comprar ou arrendar uma casa no mercado.
Ao longo das últimas décadas já houve de tudo um pouco. Nos anos 90, por exemplo, tivemos a bonificação de juros no crédito hipotecário para jovens – que muitos pais aproveitaram largamente, comprando casas em nome dos filhos. Depois disso, foram sendo lançados vários sistemas de incentivos ou subsidiação, ao ponto de nos perdermos já no seu labirinto.
No Portal da Habitação contamos, só para arrendamento, com nove modalidades diversas de apoio, algumas delas nascidas no âmbito do programa Mais Habitação do anterior governo do PS: Arrendar para Subarrendar, Arrendamento Acessível, Apoio Extraordinário à Renda, 1º Direito, Porta de Entrada, Arrendamento Apoiado, Porta 65 Jovem, Porta 65 + e Compensação aos Senhorios.
Mais recentemente, o governo da AD lançou, para jovens até aos 35 anos, a garantia pública até 15% do valor do imóvel no crédito à habitação e a dispensa de IMT e Imposto do Selo.
Portanto, do lado dos apoios ao arrendamento ou à aquisição não é por falta de medidas ou de anúncios governamentais que o problema não está, pelo menos, a ser travado.
Se estas são as medidas certas para terem o efeito pretendido já é uma coisa completamente diferente. Pelos resultados e adesão a alguns destes sistemas, diríamos que não. Nalguns casos, até podemos suspeitar que o custo burocrático para lançar e manter activos alguns apoios deve ser superior ao benefício dado a quem precisa de casa.
E depois temos o Estado construtor, onde muita gente deposita grande esperança para solucionar o problema. Teoricamente, não é descabido. Portugal é dos países da União Europeia onde o parque de casas do Estado tem um peso mais baixo.
Dos 2% de casas públicas em Portugal fazem parte as dezenas de milhar de habitações construídas sobretudo na década de 90, ao abrigo do Programa Especial de Realojamento, destinado a proporcionar uma casa a quem vivia em muitos bairros de barracas que foram crescendo, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
O PER, que fez 30 anos recentemente, consistiu num projecto lançado pelo então governo de Cavaco Silva em articulação com as autarquias. A sua execução levou à construção de 34 mil habitações públicas, permitindo a eliminação de diversos “bairros de barracas” em 28 concelhos, onde viviam 130 mil pessoas.
Uma intervenção massiva do Estado na habitação com resultados nem sequer é nova, como se vê. Porque é que não acontece de novo?
A resposta, dada por toda a evidência que vamos acumulando, é que o Estado é hoje incapaz de planear, de se organizar e de executar programas de médio e longo prazo que requerem esse tipo de requisitos.
Não por falta de recursos financeiros. Há — ou houve, este será um tempo verbal mais adequado — financiamento disponível através do Plano de Recuperação e Resiliência. E mesmo sem este, o Estado goza hoje de um equilíbrio financeiro onde seria possível encontrar verbas para a habitação.
Também não faltarão funcionários. Nos últimos 10 anos, o número de funcionários públicos aumentou mais de 100 mil, para o recorde absoluto de 750 mil.
Falta, sobretudo, organização e sentido de missão. São vários os exemplos da actual incapacidade de execução do Estado. Da falta de um inventário de património imobiliário do Estado, para que se conheçam que imóveis existem e em que condições estão, até casos simbólicos com que nos vamos cruzando de edifícios públicos devolutos há muitos anos sem qualquer utilização. O mais simbólico será a antiga sede do Ministério da Educação, no centro de Lisboa (Av. 5 de Outubro), que está fechado desde 2018. Em sete anos, o Estado não conseguiu ainda fazer dele uma residência para estudantes universitários.
Para também podemos olhar para a reabilitação do IP3 — a estrada nacional que liga Coimbra e Viseu e que todos os governo prometem fazer. Ou para a modernização da linha ferroviária da Beira Alta, que está encerrada desde 2022 e que, se reabrir este ano, terá um atraso superior a sete anos em relação ao calendário inicial.
Os exemplos de inoperância, de incapacidade de planear e executar e de impunidade face a todos os bloqueios e derrapagens são demasiados. Os governos deviam ser os primeiros a ficar preocupados com a impossibilidade de cumprir os mínimos dos seus projectos e promessas.
A crença de que o Estado que temos hoje vai desempenhar um papel fundamental na resolução do problema da escassez de habitação é, por isso, uma ideia de uma ingenuidade que chega a ser romântica.
António Costa tinha prometido uma habitação condigna para todos nos 50 anos do 25 de Abril. O 25 de Abril acaba de fazer 51 anos. Falta de vontade política? Não, pura falta de capacidade de execução de políticas.