Estudo pioneiro vai mapear o assédio no setor das artes em Portugal

Um inquérito nacional sobre o assédio nas artes em Portugal vai ser lançado no próximo mês de junho. É a primeira iniciativa do MUDA, um projeto de ação contra o Assédio nas Artes em Portugal, cujo site é lançado esta segunda-feira. O estudo científico, que quer caracterizar a realidade do assédio laboral (sexual e moral) no setor artístico em território nacional, é financiado pela Direção Geral das Artes e terá os seus resultados divulgados em março de 2026.

O projeto centra-se para já nas artes performativas — Teatro, Dança, Artes de Rua, Música e Circo — e nos cruzamentos disciplinares, com a ambição de, futuramente, alargar a investigação a outras áreas artísticas.

“Apesar de subfinanciado, conseguimos esta primeira verba para fazer este estudo científico. Não conseguirmos chegar a todas as áreas do setor, mas achamos que é um início”, explica ao Observador Raquel André, uma das coordenadoras do projeto que assegurou recentemente um financiamento em 45 mil euros da DGArtes. André realça o caráter “inédito” da iniciativa. “Não há conhecimento de nenhum outro estudo sobre assédio no meio artístico em Portugal”.

A investigação do estudo é conduzida por uma equipa multidisciplinar composta pelas investigadoras Joana Neto, especializada em Direito do Trabalho, Dália Costa, da área da Sociologia, e Ana Bártolo e Isabel S. Silva, da Psicologia. O estudo conta ainda com a consultoria de profissionais das artes, responsáveis pela coordenação executiva do projeto MUDA: Catarina Vieira, Raquel André e Sara de Castro.

“No fundo, vamos tentar mapear, fazer um levantamento daquilo que é uma caracterização do que é que se passa a nível nacional”, resume a psicóloga e investigadora Isabel S. Silva. Entre os principais objetivos do estudo estão a caracterização das formas de assédio sexual e moral no setor, a análise dos contextos e perfis mais afetados, a identificação de fatores estruturais que perpetuam práticas abusivas, e o estudo do impacto do assédio na saúde mental e qualidade de vida dos profissionais das artes. O projeto pretende ainda avaliar o nível de conhecimento dos direitos e mecanismos de denúncia disponíveis, bem como os obstáculos existentes ao acesso à justiça.

O estudo está dividido em várias etapas: elaboração de um inquérito nacional (com lançamento previsto para junho), parcerias para a sua difusão, recolha de dados quantitativos e qualitativos (entrevistas individuais), análise e interpretação dos resultados, e formulação de recomendações para o setor cultural.

“Uma das ambições do projeto é que possa haver alterações legislativas de forma a ir ao encontro daquilo que são as necessidades específicas do setor na relação com o assédio”, diz Sara de Castro, também coordenadora do MUDA. “Depois de termos um estudo de facto rigoroso e concreto, uma proposta que vem das investigadoras parece-me que terá outra força.”

Isabel S. Silva reforça a mesma ideia, sublinhando o caráter interdisciplinar da equipa de investigação. “Tem a dimensão do direito, da sociologia e da psicologia, o que permite cruzar a informação recolhida e fazer uma dimensão de propostas daquilo que podem ser indicadores mais orientadores para aquilo que podem ser medidas de prevenção, políticas mais eficazes e também sensibilizar mais as estruturas e instituições”. A investigadora frisa a importância da metodologia: “Realmente só podemos falar ou sublinhar estas recomendações quando tivermos realmente os dados que nos dão essa indicação e que são fornecidos por pessoas que de alguma forma ou experienciaram ou testemunharam este tipo de situações. Só elas nos podem dar um retrato mais rigoroso do caminho a seguir.”

O lançamento público dos resultados está previsto para março de 2026, com o objetivo de produzir conhecimento rigoroso e impulsionar mudanças nas práticas laborais no setor artístico em Portugal. Ao Observador, Américo Rodrigues, diretor-geral das Artes, garante que a DGArtes está “disponível para acatar as indicações do estudo” e as propor à tutela.

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“Acreditamos que é a partir da informação e da partilha de conhecimento das ferramentas que existem que poderemos combater a situação de assédio nas artes em Portugal”, frisa Raquel André, que esclarece que a primeira fase do estudo — um inquérito com uma duração estimada de preenchimento de cerca de 20 minutos — não serve para formalizar denúncias, apesar de reconhecer que pode impulsionar a essa ação. “Não é para fazer denúncias, mas acreditamos que talvez a partir do inquérito e da reflexão que possa haver a partir do exercício de preencher o inquérito que as pessoas possam fazer mais denúncias”.

As promotoras ambicionam chegar às mil respostas no inquérito cujos critérios de inclusão passam por ser estudante das artes performativas, ou profissional a exercer atividade nas artes performativas, ter idade igual ao superior de 18 anos, estudar ou exercer atividade profissional em Portugal continental e ilhas, e dominar a compreensão da língua portuguesa, para poder fazer o preenchimento do questionário.

Mas o estudo científico é apenas o primeiro passo do MUDA, uma iniciativa que une profissionais que há vários anos se debruçam sobre o tema do assédio. Entre 2018 e 2019, Raquel André e Catarina Vieira organizaram encontros regulares com mulheres profissionais das artes, abordando temas como igualdade de género e precariedade, e ouvindo testemunhos sobre assédio no setor. Simultaneamente, Raquel André, Sara de Castro e Catarina Vieira desenvolveram projetos artísticos colaborativos com outras mulheres, que refletiam sobre questões de género e promoviam a transformação social e política. Em 2022 e 2024, a PLATEIA, com a participação de Sara de Castro e Raquel André, em colaboração com o sindicato CENAS-STE, também organizou conversas sobre assédio no setor cultural, reunindo profissionais, sindicalistas e a advogada Joana Neto.

Lançado o inquérito, o projeto tem outras atividades previstas, como a criação de um Manual de Boas Práticas, atualmente em fase de captação de financiamento, a promoção de conversas e a realização de ações de formação.

Author: Tudonoar

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