O meu Papa Francisco é melhor do que o teu

Nós já sabíamos que a Igreja Católica lida com os mistérios da omnipresença, da omnisciência e da omnipotência — mas agora aprendemos que alguns pretendem que ela também consiga ser capaz de realizar o milagre da omnimilitância. É que, esta semana, percebemos que, depois da morte, o Papa Francisco tornou-se, simultaneamente, militante do Bloco de Esquerda, do PS, do PCP, do PAN do Livre e do Chega.

A líder do BE gravou um vídeo, com fundo negro, em que lembrava, pesarosa, todas as “causas” em que o Papa Francisco, modestamente, concordava com Mariana Mortágua: “Nos últimos dias de vida, exigiu o cessar-fogo em Gaza e opôs-se à corrida ao armamento. Condenou o ódio contra imigrantes e a ‘economia que mata’”. No fim, revelava, só faltando benzer-se, ainda que metaforicamente: “Crentes ou não crentes, a todos Francisco deu esperança. A mim, certamente deu”. Ouvindo isto, uma pessoa dá por si, de facto, a imaginar o Papa num acampamento do Bloco. Só se fica com pena que Mariana Mortágua se tenha esquecido de referir naquele curto vídeo a posição de Francisco sobre a ideologia de género. Em 2024, o Papa afirmou que se trata da “mais feia ideologia do nosso tempo” porque pretende apagar todas as diferenças entre o homem e a mulher e, ao fazer isso, “apaga a humanidade”. Para Francisco, as cirurgias de mudança de sexo são “uma grave violação da dignidade humana” porque “rejeitam os planos de Deus para a vida”. Mais: o Papa insurgiu-se contra a “colonização ideológica” feita por todos aqueles que explicavam as cirurgias de mudança de sexo às crianças. Tendo em conta tudo isto, entende-se com facilidade porque é que Francisco “certamente deu esperança” a Mariana Mortágua.

Pedro Nuno Santos, que tem lembrado em todos os debates televisivos que precisa de encontrar em algum lado os 50 mil votos que lhe faltaram para vencer as últimas eleições, também viu aqui uma oportunidade. Por isso, apressou-se a explicar aos eleitores que o Papa foi “um crítico do populismo” e “um crítico do liberalismo”. O líder do PS teve a prudência de esquecer que Francisco também foi, por exemplo, um crítico do aborto. O Papa insistiu repetidamente que “a criança por nascer representa, no seu sentido mais profundo, todos os homens e todas as mulheres que não contam, que não têm voz”. A nossa obrigação, aconselhou, é criar uma “civilização de amor” que liberte as mulheres “das pressões que as empurram para não terem as suas crianças”.

O PCP, com solenidade, publicou uma nota onde elogiava o Papa pela sua “defesa dos direitos económicos e sociais e de justiça para os excluídos desta sociedade ‘submetida a interesses financeiros’”. É interessante ler isto porque, na realidade, Francisco afirmou que “o consumismo e o comunismo têm em comum uma falsa ideia de liberdade”, lembrou que “o comunismo foi imposto aos povos” e avisou que “a ideologia marxista está errada”. Teria sido educativo se o texto dos comunistas portugueses tivesse uma adenda com aquilo que o Papa escreveu há uns anos: “Depois da queda do ‘socialismo real’, estas correntes de pensamento sobreviveram por inércia, mesmo que hoje em dia haja quem, de forma anacrónica, proponha novamente a sua aplicação”.

No PAN, Inês Sousa Real levantou-se da cadeira para proclamar que Francisco foi um defensor dos “direitos dos animais”. E foi. Mas, em 2024, duas “ativistas” do grupo radical PETA, que entendiam que aquela defesa não era suficiente, interromperam uma audiência do Papa no Vaticano com cartazes onde se lia “As touradas são um pecado” e exigindo que Francisco as condenasse. No mesmo ano, outra “ativista” atirou-se à frente de um carro que transportava o Papa no Luxemburgo ao mesmo tempo que gritava: “Parem a tortura dos touros”. Como Inês Sousa Real saberá, apesar destes protestos exóticos Francisco nunca falou sobre as touradas.

Já Rui Tavares explicou-nos (ele está sempre a querer explicar-nos alguma coisa) que “foi sobre Gaza que Francisco mais incomodou os situacionistas”. Também podia ter lembrado outro tema atual em relação ao qual o Papa “incomodava”. Por estes dias, o Tribunal Constitucional português chumbou mais uma tentativa de legalizar a eutanásia. Foi há pouco tempo que Francisco afirmou que, diante dos “efeitos trágicos da guerra, da violência e da injustiça de vários tipos, é muito fácil ceder à tristeza e até mesmo ao desespero”, mas que, “como membros da família humana, e sobretudo como crentes, somos chamados a acompanhar, com amor e compaixão, as pessoas que lutam e se esforçam para encontrar motivos de esperança”. E acrescentou que a eutanásia “é muitas vezes falsamente apresentada como uma forma de compaixão” e é “um fracasso do amor”. Rui Tavares terá dificuldade em entender isso, mas para o Papa havia uma mesma linha a unir a condenação da guerra, da injustiça e da eutanásia.

Sobra, claro, André Ventura. O líder do Chega regozijou-se com “a marca inspiradora” deixada pelo Papa, esquecendo que as posições de Francisco sobre imigração e as críticas aos problemas do capitalismo o tinham levado há não muito tempo a, copiando os seus correlegionários estrangeiros, considerar que o Papa tinha “prestado um mau serviço ao cristianismo” por, supostamente, “ter mostrado a esquerda revolucionária quase como heróica e a esquerda europeia marxista como a normalidade”.

Para atribuírem a Francisco um cartão partidário póstumo, estes líderes políticos partiram, torceram e espremeram o pensamento do Papa, preservando o que lhes interessava e descartando o que os incomodava. Há poucas coisas mais deprimentes do que assistir a políticos a tentarem conseguir votos em funerais. Mas, como dizia um ex-primeiro-ministro português muito católico, “a vida é o que é”. E, pelos vistos, a morte também. Por isso, foi preciso ter muita paciência para suportar esta semana. Ou, se quisermos imitar a apropriação que os políticos fizeram, foi preciso ter uma paciência de santo.

Author: Tudonoar

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