O porquê da indemnização aos senhores e não aos escravos

Uma das facetas que melhor reflecte os erros do pensamento woke é aquilo que usualmente se chama presentismo, isto é, o erro tacanho e inculto de julgar o passado à luz de conceitos e valores do presente, e não dos que vigoravam ou prevaleciam na época em que os factos ocorreram. É o que sucede, por exemplo, com uma escandalizada queixa que todo o bom woke faz, apontando um dedo acusatório aos homens brancos que aboliram a escravidão. Refiro-me à constatação de que, aquando dessa abolição, os donos dos escravos foram indemnizados, mas estes não. Os woke referem esse facto como se ele fosse uma aberração, um imperdoável lapso, e dispõem-se, naturalmente, a corrigir, no presente, esse intolerável e escandaloso esquecimento ocorrido no passado.

É importante começar por dizer que esta afirmação woke é abusiva e enganadora pois nem todos os países que aboliram a escravidão indemnizaram os senhores de escravos. Portugal, por exemplo, foi um dos países que não pagou indemnizações, contrariamente ao que o académico-difamador Pedro Schacht Pereira afirmou ainda há dias num programa da RTP África. As razões por que não as pagou ficarão para um outro artigo, pois o que quero mostrar aqui é que, à semelhança do que fizeram o Reino Unido, a França, a Dinamarca, a Suécia e a Holanda, esse pagamento fora previsto pelos legisladores portugueses e isso estava perfeitamente de acordo com a legalidade e razoabilidade do tempo.

A questão foi várias vezes debatida nas Cortes, nomeadamente na decada de 1840. Como Rodrigo da Fonseca, por exemplo, então sublinhou, não era aceitável espoliar uma pessoa da sua legítima propriedade, obtida a coberto das leis do país, não sendo, portanto, concebível deixar de indemnizar os senhores de escravos. Sá da Bandeira, que queria apressar a abolição, considerava que a necessidade de indemnizar os senhores era um acto de “injustiça relativa”, pois, como dizia, “muitas instituições se têm anulado ou extinguido no nosso país sem se darem indemnizações algumas aos interessados: por exemplo, o clero não recebeu indemnização alguma pelos dízimos abolidos, e eu não vejo que os donos dos escravos tenham maior direito à indemnização do que tinham os eclesiásticos”. Mas a sua era uma voz relativamente isolada. A maioria dos parlamentares portugueses considerava que as expropriações realizadas em 1820 ou após o triunfo liberal de 1834 tinham sido situações de excepção, compreensíveis em tempo de guerra ou em períodos revolucionários, mas não em tempo de paz e na vigência da Carta Constitucional.

Em Inglaterra também houve pessoas que se manifestaram contra o pagamento de indemnizações aos senhores e que, indo mais longe do que foram os parlamentares portugueses, advogaram, até, que essas indemnizações fossem antes pagas aos escravos. Foi o caso, raro, ao que julgo, do grande abolicionista Thomas Clarkson. Não tenho conhecimento de que, no Portugal de Oitocentos, alguém tenha advogado tal coisa. Não ignoro, claro, que a defesa da ideia de indemnização aos escravos já fora feita em séculos anteriores, mas fora-o noutros contextos e com outras implicações. Penso, nomeadamente, nos teo-juristas ibéricos que se debruçavam sobre as circunstâncias da escravização de pessoas africanas, e que colocaram essa eventualidade em cima da mesa para todos os que tivessem sido ilegitimamente escravizados, isto é, para aqueles cuja escravização não houvesse resultado de guerra justa, delito grave, nascimento ou de venda legítima e justificada, mas sim de métodos piráticos. Havendo fraude no processo de escravização, daí resultaria a absoluta necessidade de restituição não apenas da liberdade do escravizado, mas dos dias de trabalho a que indevidamente fora forçado. Ou seja, se o senhor soubesse que o seu escravo fora privado da liberdade por meios ilícitos estava obrigado, sob pena de pecado mortal, a libertá-lo. Tudo isso seriam responsabilidades e eventuais encargos a assumir a título particular por todo o bom cristão, não pelo estado.

A transferência dessas recomendações e encargos da esfera individual para a do estado, como Clarkson propôs, não colhia apoios nem mesmo na Inglaterra abolicionista do século XIX, desde logo porque não haveria meios financeiros para suportar tal proposta. Lembremos, a propósito, que o governo britânico teve de contrair um empréstimo para pagar 20 milhões de libras de indemnizações aos proprietários de escravos, empréstimo que só há relativamente pouco tempo acabou de pagar. Aliás, considerava-se geralmente que a libertação, associada a políticas de reeducação e apoio social como a Dinamarca, por exemplo, implementou, era uma concessão suficiente — e mais do que justa, claro — para as populações até então escravizadas. Acresce que essa era também, por vezes, a mensagem que provinha dos próprios escravos. O seu pensamento está pouco e mal documentado, mas algumas provas existem de que aquilo que acima de tudo procuravam era escapar à escravidão. Em 1773, por exemplo, vários escravos dirigiram uma carta à assembleia do Massachusetts prometendo que, desde que obtivessem a liberdade, iriam para África e nada exigiriam como compensação pela sua escravização ou eventuais danos que tivessem sofrido.

Ou seja, no século XIX, a época que aqui nos interessa, a concessão de indemnizações aos escravos a libertar não fazia parte do quadro de pensamento dos governantes e legisladores que puseram legalmente fim à escravidão. É claro que se os actuais woke presentistas tivessem vivido nessa época tudo teria sido muito melhor e mais justo, e os escravos teriam recebido generosas indemnizações. Todavia não foi assim que aconteceu, não era assim que se pensava — nem mesmo no Haiti, um país que resultou da Revolução Francesa, de uma grande revolta de escravos e da guerra com a França napoleónica — e eu julgo que ainda bem que assim foi porque se os responsáveis políticos do século XIX tivessem de atender às actuais reivindicações woke o mais provável é que ainda hoje houvesse escravos e senhores.

Author: Tudonoar

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *