Os dois dias diferentes do mesmo apagão

Também eu não me vou livrar de um depoimento acerca do apagão. Segundas-feiras de manhã são para muitos pastores evangélicos momentos de paragem. No meu caso e da Rute, damos sempre uma boa volta a pé. Raramente nos leva menos de duas horas e a praia de Carcavelos costuma ser o destino. Assim fizemos. O plano era receber ao almoço a Família Rodrigues, da Igreja da Lapa. A Késia chegava primeiro com os meninos, o Boaz e a Domênica, e só depois chegaria o Newton depois de trabalho que tinha em Cascais. Antes do almoço já estava o país sem electricidade.

Ficámos sem refeição. Qual o lugar que está preparado para servir almoços até no Apocalipse? O Restaurante Chinês Boa Sorte, claro. Assim fizemos. Cada um escolheu o seu menu e só o café teve de ser inventado, a custo e com filtros e moagem, em casa, graças à ajuda da vizinha Jéssica (o Boa Sorte já aceitava marcações para o jantar). Como tínhamos o Boaz e a Domênica a dormir sestas, a casa aceitou mais naturalmente a paragem do mundo. Nessa altura lembramo-nos do rádio do Caleb mas, lá está, estava no quarto onde os meninos dormiam. Ficámos sem informação.

A tarde foi avançando e a Família Rodrigues regressou a casa. Todos os planos de trabalho tinham sido cancelados. Íamos verificando os telemóveis mas nada. Nunca mais pensei no rádio do Caleb. Fui lendo: na Bíblia o livro de Jeremias, e o “Trick Mirror” da Jia Tolentino que tinha comprado por influência de uma fotografia que o Francisco Mendes da Silva pôs no Instagram (o livro tem forças evidentes e fraquezas indisfarçáveis). Ouvi música. A rua das nossas traseiras, sem circulação automóvel, foi-se enchendo de miúdos a brincar. Na nossa casa uns entretinham-se com jogos de tabuleiro.

O ritmo ficou lento e, mal comparado, fazia lembrar as férias do nosso passado. Veio um tédio bom, uma moleza ajudada pelo sol que estava exuberante. Como não ouvimos nem soubemos de notícias nenhumas, não comprámos nem tentámos comprar nada. Chega a hora de jantar e fomos comer o que havia. Havia restos do chinês (o George Costanza explica num episódio do Seinfeld que há sempre restos do chinês), algum pão e até um salmão enlatado que experimentei com prazer. O Joaquim sugeriu que fôssemos à praia enquanto não escurecia. Na imprevisibilidade total do dia, não nos pareceu mal pensado.

Teve graça ir à praia de Santo Amaro enquanto não escurecia mas ainda teve mais graça chegar lá quando escureceu. Aqui e ali havia algumas luzes públicas acesas (na estação de Oeiras, por exemplo) mas no geral a treva invadia a cidade. Gloriosa escuridão essa. As pessoas cruzavam-se sem poderem ver os seus rostos, guiadas apenas pela proximidade das vozes. Dizia aos nossos miúdos que quando éramos pequenos as ruas eram mais assim, mais dependentes da distância curta que os amigos partilhavam do que propriamente da iluminação pública. Com a pouca bateria que ainda havia nos telemóveis, alguns fotografavam o momento.

Quando, ao regresso, estávamos a pouco mais de uns cinco minutos de casa, ouvimos um grito colectivo ao longe. Por estarmos na zona da estação de Oeiras, caminhávamos numa área com poucas casas. Desconfiámos, claro. Tínhamos notado que alguma rede ia aparecendo nos telefones mas nada de informação. Ao escutarmos aquele estranho clamor, confirmámos: a electricidade estava de volta. A cidade celebrava o regresso da luz. Naturalmente sentimos o alívio também. Ao chegarmos a casa, alguns interruptores ligados e velas falsas, iluminadas a led, creio, já nos restituíam um lar iluminado.

Foi só quando acendemos a televisão que ganhámos alguma noção do que tinha acontecido connosco e do que tinha acontecido com os outros. Fomos para a cama mais descansados. No dia seguinte, ao ouvir os relatos das pessoas da Igreja da Lapa, notei dois padrões distintos nas histórias do apagão: o da maioria passava por compras apressadas em supermercados já vestidos de pós-apocalipse; uma minoria, como nós, menos informada, tinha aproveitado o desligamento para molengar. O factor rádio fez toda a diferença. Nessa medida, o mesmo dia do apagão parece ter oferecido dois dias substancialmente diferentes.

Como crente, creio num apocalipse literal. Vivo disponível para a possibilidade de ele poder acontecer-me. De certo modo, integro o grupo de cidadãos mais mentalizado. Não sei se o nosso apagão da passada segunda-feira foi um teste para ele. Se sim, acho que me comportei de um modo relaxado e blasé. Ruminei no facto nos dias seguintes. Encontro uma contradição curiosa: quem não acredita no apocalipse, tomou dele alguns dos pânicos. Eu, que o aguardo, passei-lhe ao lado. Chego a uma conclusão provisória: talvez o segredo para o último dia seja vivê-lo como se fosse apenas mais um.

Author: Tudonoar

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