
A primeira questão que poderíamos colocar é a de saber se apenas os católicos choram a morte do Papa Francisco? E a resposta é evidente. Não. A morte de Francisco comoveu o mundo inteiro e até as altas esferas políticas mundiais fizeram questão de expressar o seu lamento. Nem mesmo Donald Trump faltou às cerimónias fúnebres, apesar do que vem defendendo relativamente à deportação de imigrantes e dessa posição ser tão antagónica face ao que o Papa defendia.
Logo no início do seu pontificado, em Lampedusa, Francisco referiu-se à “globalização da indiferença”, depois de termos deixado de olhar para aqueles homens, mulheres e crianças que se aventuravam no Mediterrâneo em busca de uma vida.
Há formas da existência que não podemos dizer que são “um viver”, por força dos flagelos da perseguição, da guerra, da pobreza ou da miséria.
O Papa acolheu-os e à sua causa, deu-lhes visibilidade e reconheceu a sua dignidade. E nós fomos confrontados com a nossa hipocrisia ou incapacidade na resolução de tantos dramas da vida humana.
Os imigrantes choram por isso aquele que lhes deu um rosto, um nome.
Recordo a história bíblica em que Jesus, rodeado por uma multidão, foi tocado na sua túnica por uma mulher que sofria de hemorragias (Lucas 8, 43-48). Podia ter ignorado a mulher, mas há algo de diferente nela que leva a que Jesus a dirigir-lhe uma atenção especial.
Mas não teriam as outras pessoas na multidão tantos problemas, dramas ou necessidades igualmente válidas? Porquê procurar uma única mulher?
É-nos dito que essa mulher foi salva pela sua fé e depois de curada Jesus diz para ela ir. Ir para onde? Para o mundo, para viver. Jesus dá uma oportunidade à mulher para finalmente viver.
O ser humano, qualquer que seja a sua origem, deve poder viver com dignidade; deve-lhe ser dada uma verdadeira oportunidade. Só assim será livre física e espiritualmente.
Francisco ao dar relevo aos mais desfavorecidos, começando pelos imigrantes, quis dar-lhes uma oportunidade para viverem.
Não se propõe que um ou vários países suportem os encargos que isso pode implicar de forma ilimitada, mas sim que essas pessoas sejam tratadas com diferença atenta a sua circunstância particular, ao invés de indiferença ou do desprezo.
Costuma-se dizer que o que “os olhos não veem, o coração não sente”. Francisco permitiu-nos ver para que assim pudéssemos também sentir. Ver até aqueles que foram depositados em campos afastados dos olhares públicos, sem um mínimo de condições.
Choram Francisco também os sem-abrigo, desprovidos e ignorados tantas vezes pelos transeuntes das cidades apressados nas suas rotinas e afastados pelo cheiro ou pelo aspeto de alguns.
O Papa chegou a oferecer-lhes tendas para que pudessem “morar”. O toque da generosidade, da preocupação e mais uma vez da diferença reforçou a necessidade de também nós termos de fazer alguma coisa para cuidar de quem vive na rua.
Francisco mostrou aos decisores públicos que não podemos ser indiferentes. Mas mostrou também aos sem-abrigo a força da esperança e da dignidade. Caminhar sem esperança é um viver sem Cristo, um desapossamento da humanidade.
O mesmo se pode dizer relativamente aos presos, afastados da vida em sociedade e onde facilmente a escuridão substitui a esperança. Onde as grades e a privação da liberdade física conduzem à privação da liberdade espiritual.
Francisco olhou fraternalmente também a todas as vítimas da guerra, tendo uma preocupação com a construção da paz, as pessoas com deficiência e os povos indígenas.
Rodeou-se, ainda, da fonte viva da esperança, os jovens, a quem motivou para construírem um mundo inclusivo e melhor.
O Papa olhou também os divorciados, os recasados e os homossexuais e disse a todo o mundo que a Igreja era para “todos, todos, todos”.
Francisco navegou como a água entre as rochas das grutas profundas e apertadas da doutrina católica. Só a água consegue desbravar os caminhos sinuosos.
Francisco prefere ter a porta aberta para que entrem “todos” e que através da pastoral e do diálogo se possam criar caminhos onde antes existiam muros.
Muitos disseram que a doutrina podia ser colocada em causa, mas Francisco não renunciou a uma vírgula dos ensinamentos bíblicos ou dos dogmas fundamentais. Apenas quis acolher, sem julgar.
Quantas dessas pessoas não têm uma circunstância, uma história ou um sofrimento particular? Porquê tratar essas pessoas como se elas não existissem?
O Papa permitiu-lhes “viver” também na Igreja, distinguindo a pessoa do pecado, o ser das ações deste. Por exemplo, se alguém é divorciado por culpa que não é sua deve ser julgada? Escolheu o homossexual o que sente?
E os recasados, que, entretanto, criaram uma família sólida, tiveram filhos, reconstruiram as suas vidas assente no compromisso? Não têm o direito a serem olhados com dignidade estando comprometidos com o seu projeto familiar?
E não têm aquelas crianças geradas o direito a serem também batizadas e poderem caminhar na Igreja? E os filhos das mães solteiras não podem também ser acolhidos na Igreja?
Todas estas pessoas puderam encontrar uma oportunidade de começar a viver, de praticar ou conhecer a fé e de serem amadas pela Igreja.
Também as vítimas de abuso sexual na Igreja foram acolhidas pelo Papa, que continuando o trabalho de Bento XVI o aprofundou e levou mais longe, constituindo comissões independentes e afastando membros do clero responsáveis ou coniventes.
Francisco distinguiu a Igreja de Cristo daqueles que são meros abusadores. Não é tudo a mesma coisa.
Francisco trouxe esperança de justiça e de mudança, mas também mostrou que as pessoas abusadas podem ser acolhidas e a confiança e a fé reabilitadas. Tentou reparar dentro do possível.
As pessoas choram o Papa Francisco, olhando tantos exemplos, porque demonstrou na prática as virtudes que a Igreja promove e que estão gravadas no ADN da humanidade.
A defesa dos direitos humanos, tantas vezes escritos em compromissos formais, são frequentemente e flagrantemente violados e o Papa mostrou com as suas ações que é possível, servindo, humilhando-se e falando a verdade, fazer a diferença.
Francisco mostrou-nos que é possível agir para que o “Homem viva”. E “todos, todos, todos” puxamos por “todos”. Cada um tem um papel nesta história do ser humano em Cristo, porque a Igreja é intemporal e é universal.
Por isso soube também fortalecer o diálogo inter-religioso e o ecumenismo e apelar incessantemente ao respeito pelos direitos humanos e à paz.
Às vezes julga-se que só alguns são ou podem ser santos. Para quê ter tanto trabalho sendo “bonzinho” se a santidade parece algo estratosférico, destinado apenas a poucos?
Francisco mostrou-nos que praticar o bem, não sendo indiferente, é afinal algo bem mais acessível e que impele o homem a uma verdadeira mudança.
Ele abdicou do seu próprio conforto. Humilhou-se, beijando os pés de líderes de comunidades em conflito ou visitando de forma inédita a representação diplomática da Rússia junto do Vaticano quando a guerra na Ucrânia despoletou.
Mas essa mudança não visa a vanglória pessoal; visa a salvação de “todos”. Francisco reafirmou isso à exaustão. Quando o Homem muda o seu interior, conformando-o ao bem da humanidade, o Homem vive — ou permite que outros vivam.
Acredito que alguns líderes políticos que assistiram ao funeral devem ter-se sentido incomodados ao confrontar o exemplo de Francisco com as suas próprias atitudes.
Movidos pela estranheza e pelo desconforto, podem ter sido forçados a olhar a sua conduta individual e a reconhecer as suas falhas. Questionar-se: afinal, porquê tanto mal, tanta teimosia ou inflexibilidade? E aí, talvez alguns também tenham chorado, porque puderam ver e sentir a sua miséria. Mas ver e sentir liberta. Ajuda à mudança. O encontro entre Trump e Zelensky é, nesse aspeto, inspirador.
No panorama que acompanho mais — a política nacional — desejo que possa haver mais verdade no debate político, mais fraternidade e humanidade. Não basta invocar o Papa Francisco nas celebrações do 25 de abril no Parlamento e aceitar depois o uso da mentira ou das meias-verdades no debate político. Já vi isso tantas vezes, até em debates televisivos onde participo. E até já apontei numa Conferência de Líderes a necessidade de autorreflexão por parte dos partidos políticos .
Francisco referiu-se claramente à necessidade de verdade e de combate às fake news na política (Fratelli Tutti, capítulo 5).
Todos somos desafiados a mudar no nosso contexto individual. E, sobretudo na política e na comunicação social, precisamos de mudar muito para sermos fiéis aos desafios que Francisco nos lançou.
A forma como o Papa Francisco agiu permite-nos perceber que é possível que todos os Homens vivam plenamente.
Os valores humanos inspirados no cristianismo não são uma proposta teórica: podem e devem ser vividos.
Esse viver liberto das amarras do mundo pode ser alcançado sem vanglória, com humildade, reconhecendo que o tempo de cada um passa demasiado depressa, e que lutar pelo poder ou pelas aparências é inútil.
Porque o Papa Francisco amou todos, recordou-nos e guiou-nos de forma desprendida de estar no mundo, por isso o choramos.