Portugal já ficou às escuras por causa de uma cegonha e de um incêndio em França

Há quase 25 anos, boa parte do país ficou às escuras durante cerca de duas horas. Pelas 22h00 de 9 de maio de 2000, um corte de energia elétrica deixou a Grande Lisboa, a margem sul do Tejo, partes de Santarém, o Alentejo e o Algarve imersos em escuridão. Os comboios na região ficaram interrompidos e a PSP reforçou as suas patrulhas em Lisboa para evitar “aproveitamentos da situação”, como noticiou a agência Lusa à época, apesar de não se terem verificado quaisquer incidentes resultantes de tal fenómeno.

Numa primeira instância, como recordam as notícias da época, a EDP não prestou qualquer esclarecimento sobre tamanho apagão. Já a Rede Eléctrica Nacional (REN) adiantou apenas que tinha sido provocado por  “um disparo na zona da subestação de Rio Maior”, o que levou à perda de todo o fornecimento a sul dessa infraestrutura, entretanto restabelecido de forma gradual através de linhas alternativas.

O apuramento de responsabilidades subsequente identificou a causa de tal apagão, imortalizando-o no imaginário do país: foi uma cegonha que, colidindo com uma linha de alta tensão na Figueira da Foz, morreu eletrocutada e, no processo, provocou o tal “disparo” em Rio Maior. No entanto, o problema não foi apenas o choque, já que é comum esta convivência entre as aves — uma notícia da Visão de 2017 dava conta que 25% da população portuguesa de cegonhas tinha nidificado em postes de eletricidade; a questão é que o equipamento de segurança da rede não foi ativado com o choque.

Três anos depois, a 4 de agosto de 2003, um outro apagão — total durante meia hora e parcial durante cinco horas — afetaria os distritos de Évora, Beja e Faro. Tal deveu-se aos incêndios de verão que afetaram as linhas entre Palmela e Sines, consideradas duas “auto-estradas eléctricas” do país. Na altura, a REN disse que a rede nacional permanecia vulnerável a cortes idênticos enquanto não fosse concluída uma linha de transporte de electricidade entre Sines e a fronteira espanhola.

No dia 4 de novembro de 2006, Portugal seria uma vez mais sujeito a um corte elétrico, mas desta vez a sua causa seria reportada a milhares de quilómetros de distância, na Alemanha. O apagão durou apenas 15 minutos, entre as 21h10 e as 21h25 desse dia, mas as consequências estenderam-se à interrupção do fornecimento de energia em várias zonas de Lisboa e arredores durante quase uma hora, afetando também o litoral centro e o norte do país, se bem que durante menos tempo.

Nessa ocasião, o problema terá surgido nas redes de alta tensão da empresa de distribuição alemã E.ON entre a Renânia do Norte e Vestefália, provocando uma falha em cascata: ao obrigar a empresa a desligar outros cabos, isso provocou uma série de disparos automáticos na rede europeia para evitar um apagão generalizado em todo o continente, o que significou que muitos países foram afetados, incluindo França. Ora, dependendo a Península Ibérica da rede francesa, o problema chegou então a Espanha, Portugal e até Marrocos.

Dessa vez, a culpa recaiu na desativação de uma linha elétrica para permitir que um cruzeiro passasse por baixo dos cabos aéreos do rio Ems, numa zona entre a Renânia do Norte e Vestefália. Na altura, a E.ON rejeitou ter ocorrido algum problema no que toca à manutenção da rede elétrica, atribuindo a causa a “erro humano”, pelos seus funcionários não terem usado todos os meios técnicos de que dispunham para avaliar aquela situação. No entanto, no início do ano seguinte, a Comissão Europeia apontou o dedo num relatório ao investimento insuficiente na qualidade e segurança da rede de electricidade dos estados-membros, assim como à empresa, que “não pôs em marcha os procedimentos de segurança necessários e nem sequer tinha os instrumentos necessários para verificar se o sistema estava a operar dentro dos limites de segurança”.

Tal incidente fez soar os alarmes na Comissão Europeia quanto à necessidade de prevenir situações futuras como esta ou como o apagão generalizado de Itália em 2003 (que não afetou Portugal). Foi por isso que, por exemplo, em novembro de 2016, Portugal, Espanha e França fizeram uma simulação conjunta de repôr o abastecimento elétrico em caso de apagão.

O exercício consistiu em simular um apagão generalizado fruto de um incidente grave, conseguindo-se — ao ativar um processo de substituição da fonte de alimentação do sistema elétrico por “ilhas elétricas”, pequenas áreas com capacidade de geração autónoma — ter todo o sistema a funcionar de forma segura ao fim de quatro horas.

O simulacro foi, à época, considerado um sucesso pelo então diretor de gestão do sistema da REN, Albino Marques, mas a situação que se verificou nesta segunda-feira demonstraria que o que os exercícios e o que se passa no terreno têm níveis de complexidade distintos. De resto, nem o último apagão a afetar Portugal, ocorrido há apenas quatro anos, prepararia o país para o que aconteceu.

Foi a 24 de julho de 2021, tendo ocorrido um novo problema no fornecimento de energia com cortes parciais em concelhos de norte a sul do país durante cerca de duas horas, sendo que a situação mais grave foi a inutilização do serviço de emergência 112 durante algum tempo. A origem desta feita foi em França, quando um incêndio no sul do país obrigou ao corte de uma a linha de muito alta tensão entre Perpignan e o oeste de Narbonne.

A consequência, como a Rede de Transmissão de Energia Elétrica (RTE) de França viria a admitir, foi a mesma do incidente de 2006: tendo os fluxos de eletricidade sido transferidos para as linhas nos Pirenéus ocidentais, deu-se uma sobrecarga que causou cortes de energia em França, que acabaram por afetar as redes espanhola e portuguesa, desligando a Península Ibérica da rede elétrica europeia.

Author: Tudonoar

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