“Se o descanso não fosse tão excecional, talvez não tivéssemos tanta vontade de fugir” – Observador

É um ritual que se repete com precisão suíça em tudo quanto é organização de trabalho: quando começa um ano novo, o primeiro instinto é garantir a marcação de férias com uma voracidade de rapina, dado que os próximos 365 dias poderão vir a ser arruinados se aquelas duas ou três semanas de pausa não forem asseguradas nas datas pretendidas e com os destinos fechados. Parece absurdo, mas é uma das facetas da vida moderna — e, segundo Anna Pacheco, é um dos pilares em que o turismo enquanto economia assentou para assumir um papel fulcral.

“A indústria do turismo é sustentada precisamente por um desejo de fuga, por uma necessidade desesperada de descansar e de fugir de alguma coisa. E penso que isto é muito interessante para analisar porque é que viajamos ou porque é que queremos viajar tanto”, afirma em conversa ao Observador. Jornalista natural de Barcelona, Pacheco esteve em Lisboa para divulgar o seu livro Estive Aqui e Lembrei-me de Nós, um ensaio que mistura investigação com análise antropológica — parte da sua formação académica — e sociológica sobre o fenómeno do turismo nos tempos que correm.

A premissa desta obra partiu da investigação da jornalista ao longo de sete meses em três hotéis de luxo da sua cidade natal, misturando-se entre os trabalhadores e infiltrando-se até em reuniões laborais. A partir daí, Pacheco faz o retrato não só de uma classe profissional altamente precarizada, mas também de uma indústria confrontada com o seu próprio papel na transformação das cidades e na crescente pressão habitacional. “Muitas vezes o argumento para desarmar os protestos é esse, que esta indústria dá muito trabalho. Mas depois temos de ver como são estes empregos e como as pessoas que vivem do turismo ganham mal. E há também a relação com a crise da habitação, que é muito evidente em Espanha. Quem consegue um emprego num local altamente turístico, e por causa da turistificação que aumenta as rendas, vai ver que o salário irá quase inteiramente ou mais de metade para esse fim”, defende.

No entanto, o espectro deste trabalho vai mais além. Pacheco tenta perceber porque é que o conceito de viagem tem um papel tão central nas nossas vidas — mais até do que a “natural curiosidade humana” de conhecer novos lugares. Não partindo de ponto de vista imparcial — nem fingindo que o faz —, a jornalista considera que o turismo vive numa relação simbiótica com o modelo de trabalho capitalista, em que ao viajar “muitas pessoas sentem que se podem comportar como os seus patrões” e em que o sítio que se escolhe tem um efeito prestigiante ou menorizante perante terceiros, resultando numa “curiosidade dopada” a braços dados com a “acumulação insubstancial de experiências”. Alerta, no entanto, para os riscos de políticas e discursos que promovam a elitização do turismo. “São falácias que têm a ver com esta ideia de tornar as viagens cada vez mais exclusivas e obviamente os efeitos continuam a ser os mesmos, se não piores”, assegura.

Ao longo da entrevista, Anna Pacheco explica que não é contra férias, mas que temos de “pensar noutras formas de descanso popular”, especialmente numa fase em que a pressão turística assume tal ordem que, por exemplo, Barcelona foi palco em 2024 de grandes protestos contra a turistificação. “Vamos ver como enfrentamos este verão e o próximo, porque sei que há uma rutura algo elementar que tem a ver com o facto de muitas pessoas de Barcelona já não poderem viver na cidade. Portanto, não é algo contra o turista. Vai para lá do slogan ‘tourist go home’. Temos de ir além do slogan e do graffiti e mais contra o modelo”, garante.

A capa de “Estive Aqui e Lembrei-me de Nós”, de Anna Pacheco, na edição portuguesa da Objetiva

A determinado momento, neste livro cita um sociólogo para caracterizar o nosso tempo como “a era do turismo”. Em que consiste?
Gosto muito da forma como ele define esta era como dois lados da mesma moeda. O turismo é revolucionário e, ao mesmo tempo, é de certa forma a assunção complacente de tudo; é, por um lado, o desejo de aceitar as coisas como elas são e, por outro, o desejo de as transformar. É-nos apresentada muitas vezes a ideia da idade de ouro do turismo, de que é uma aspiração democrática, afastamo-nos das grandes viagens do século passado, da aristocracia em que só alguns podiam viajar, e agora parece que toda a gente pode fazê-lo. E o turismo tornou-se também uma espécie de capital simbólico muito importante, em que não é apenas a viagem, mas tudo o que representa, porque também se viaja de certa forma para dizer que se viajou. Tento questionar o que sempre nos foi dito sobre o turismo como sendo uma fonte limpa de riqueza. Além de que essa ideia de que o turismo é democrático ou que toda a gente viaja é, no mínimo, questionável. Um dos dados que considero mais impressionantes é o facto de apenas uma percentagem inferior a 10% [da população mundial] poder viajar, atravessar fronteiras para fins turísticos. Ou seja, trata-se de uma minoria e, além disso, típica do Norte Global. Isto significa que, quando estes mantras são repetidos, podemos pelo menos questioná-los.

Para compreender o fenómeno turístico, fez um trabalho de campo ao longo de sete meses junto de três hotéis de Barcelona, entrevistando os trabalhadores e por vezes infiltrando-se em alguns espaços e atividades. A que conclusões chegou?
Em primeiro lugar, compreendi como o turismo tem algo de muito performativo, é quase uma espécie de teatro em que a cidade se coloca à disposição do visitante temporário e em que até os próprios trabalhadores da indústria turística se tornam, de certa forma, representantes ou atores desse teatro. E muitas vezes, quando se vai a um destino, espera-se que este corresponda às expectativas — ou seja, que haja uma certa italianidade em Itália, uma certa hispanidade em Espanha e aqui o mesmo em Portugal. Portanto, eu queria ver o que estava por detrás deste teatro, entrar um bocadinho nestes bastidores para ver qual é a cultura corporativa que existe nestes sítios. E também procurei — possivelmente contagiada por estas ficções como The White Lotus — ver se também há qualquer coisa nestes hotéis de luxo parecida com ressentimento de classe, se esse é um terreno interessante para uma revolução, porque há uma grande diferença entre as pessoas que tornam estes espaços possíveis e a obscenidade dos preços que um quarto custa — estamos a falar de noites de 12.000 euros ou mais. Procurei esse ressentimento de classe e encontrei-o de diferentes formas, como pequenas sabotagens dentro da empresa, mas não uma ideia épica ou grandiloquente de uma revolução que pudesse estar em gestação.

Descreve no livro algumas das formas como a indústria do turismo depende da própria precariedade dos seus trabalhadores para subsistir. Pode enumerar e explicar alguns exemplos?
Em Espanha e certamente aqui em Portugal, as economias têm sido baseadas no turismo de sol e praia. Para nós, este tem sido um dos pilares que tem sido fortemente promovido e propagado desde o regime de Franco. E, durante muito tempo, o turismo pareceu ser uma indústria limpa de riqueza, parecia até que não estava associada a uma materialidade poluente. Era simplesmente dinheiro grátis que nos caía do céu a nós, espanhóis.

Author: Tudonoar

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