
A imagem é totalmente desfocada e traz um aviso no Facebook: “Este vídeo foi ocultado para que as pessoas possam decidir se o querem ver”. Decisão tomada e um corpo em sangue, tapado com um pano, no meio da terra batida, surge no meio do ecrã. À volta, muitas pessoas com telemóveis, uma mulher em pranto e vozes indignadas.
Não é o conteúdo mais violento ou chocante já partilhado nas redes sociais das mortes causadas na contestação social que sacode Moçambique desde 21 de outubro. Há uma outra imagem do mesmo corpo, deixado num separador central de uma estrada nacional, ainda a manhã desta terça-feira não tinha terminado, que circulou em grupos de WhatsApp, no X, no Facebook, no TikTok, no Instagram. E há depois a luta por este corpo que durou mais de uma hora entre os jovens que protestavam e a polícia anti-motim, a Unidade de Intervenção Rápida (UIR).
Jovem foi hoje baleado em Maputo, um novo caso relacionado com a agitação social pós-eleitoral moçambicana, com populares a responsabilizarem a polícia e a carregarem o corpo para a estrada Nacional 4 (N4), levando a carga policial. pic.twitter.com/vDvnR94PnP
— Rádio e Televisão Académica de Moçambique (@RtvamOficial) March 18, 2025
Ainda não se sabe o nome da vítima, mas sabe-se um número: 361, a soma das mortes ocorridas na tensão pós-eleitoral neste país africano governado há 50 anos pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Estas são as contas da Plataforma Decide, Organização Não Governamental (ONG) que junta outras congéneres e monitoriza processos eleitorais. Venâncio Mondlane, principal opositor moçambicano e líder da contestação, diz que são mais, há ONGs que falam em 400, e para o Centro para a Democracia e os Direitos Humanos são mais de 600.
“Era um dia que parecia de festa na zona da Casa Branca”, bairro a nove quilómetros de Maputo, “e acabou em tragédia” diz Wilker Dias, coordenador da Decide. Este não era um dia qualquer, era o 18 de março, data que o governo sombra de Venâncio Mondlane escolheu como o “Dia dos Verdadeiros Heróis do Povo Moçambicano” em contraponto com o 3 de fevereiro oficial, Dia dos Heróis Moçambicanos.
Não foi por acaso que o autoproclamado “Presidente do Povo” fixou este dia: a 18 de março de 2023, a polícia reprimiu com violência marchas pacíficas em homenagem a um icónico rapper de intervenção, Azagaia, muito popular em Moçambique e noutros países lusófonos, que morrera uma semana antes.
Moçambique despede-se pela última vez de Azagaia, o “rapper do povo” que preservava a coesão social
Nesse sábado, agentes da polícia alegaram ter “ordens superiores”, nunca confirmadas, para usar balas de borracha e gás lacrimogéneo contra a multidão que marchava pacificamente. Houve mais de duas dezenas de detidos, mais de dez feridos (dois perderam olhos) e aí nasceu a “Geração 18 de março”, um movimento com jovens voluntários que prestam apoio a vítimas de manifestações.
Perderam os olhos em repressão policial mas dão corpo à “geração do 18 de março” em Moçambique
Para Venâncio Mondlane esse não foi apenas o dia “da comemoração e da celebração da vida e da obra de Azagaia, foi ali onde tudo começou”. Só depois é que “vieram as manifestações que ocorreram ao nível das eleições autárquicas e agora as manifestações ao nível das eleições gerais. Isto tem história”, frisa.
A ideia era festejar, lembra esta terça-feira Mondlane que convocou uma paralisação geral para o dia. “Cada cidadão teria a liberdade de celebrar levantando cartazes dos seus próprios heróis: pai, mãe, músico preferido, irmão, amigo, etc”. Ninguém devia trabalhar, seria feriado, anunciou o político que no “Jornal do Povo”, onde publica os seus decretos, enunciou 14 heróis em que figuram Edson da Luz (Azagaia), Elvino Dias e Paulo Guambe (elementos da sua equipa assassinados a 19 de outubro) sem esquecer os históricos da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, no poder há quase 50 anos) Eduardo Mondlane e Samora Machel, mas também o escritor João Craveirinha, por exemplo.
E a festa aconteceu em algumas províncias, como Maputo, Zambézia ou Cabo Delgado. Grupos de pessoas marcharam com cartazes, cantaram, gritaram. Por vezes, como na Vila de Bilene, em Gaza, ou perto da capital, foram intimidados pela polícia com balas reais e gás lacrimogéneo.
18 MARCH: CABO DELGADO PAYS TRIBUTE TO THE TRUE HEROES OF THE MOZAMBICAN PEOPLE
On 18 March 2025, Cabo Delgado Province honours the true heroes of the Mozambican people, remembering their struggle and legacy in the nation’s history. This tribute celebrates those who stood… pic.twitter.com/1J4n3jdtKY
— Justice Frontil Equitas (@justicefrontil) March 18, 2025
???? VILA MUNICIPAL DE MILANGE
There was a march to mark March 18, the day of the true Mozambican heroes. #Mozambique #Milange #TrueHeroes #March18 pic.twitter.com/ihnxh9SyHz
— Justice Frontil Equitas (@justicefrontil) March 18, 2025
???? LONG LIVE MODERN HEROES DAY – MARCH 18: MAPUTO CELEBRATES INCLUSIVE HONOR FOR ALL
From Maputo on March 18, 2025, the vibe is electric as people mark “Modern Heroes Day,” a celebration born on March 18, 2023, when a generation stood up for its rights. You can see how serious… pic.twitter.com/6f2rz4GIh3
— Justice Frontil Equitas (@justicefrontil) March 18, 2025
???? FLOWER WREATH CEREMONY AT HEROES SQUARE IN BILENE DISRUPTED BY POLICE INTIMIDATION ON MODERN HEROES DAY
On March 18, 2025, in Vila de Bilene, Gaza Province, the Mozambican people gathered at Praça dos Heróis Moçambicanos for a flower wreath-laying ceremony to mark “Modern… pic.twitter.com/MkW9b1re1o
— Justice Frontil Equitas (@justicefrontil) March 18, 2025
“Infelizmente, um dia pacífico, sem nenhum indício de vandalismo, sem nenhuma desordem, onde os jovens apenas celebravam os heróis das suas próprias histórias, a polícia intervém e começa a matar novamente”, lamenta Venâncio Mondlane numa nota publicada nas suas redes sociais.
Assim se passou na Casa Branca, na Matola, arredores da capital, a cerca de 500 metros das portagens de Maputo da N4, principal estrada para a fronteira de Ressano Garcia, com a África do Sul. “Os jovens estavam a organizar-se com colunas e comida para celebrar esta data especial, a data de Azagaia”, começa por recordar Wilker Dias que estava a passar por ali. Mas “a polícia disparou e matou uma pessoa”, diz o ativista.
In the Casabranca area of Matola, the population was preparing for the heroes’ day celebrations decreed by the former presidential candidate and the police started firing tear gas and real bullets. pic.twitter.com/SKoGHIhyPV
— Wilker Dias???????? (@wilkerDias13) March 18, 2025
No local, várias pessoas relataram à agência Lusa que a polícia entrou no bairro, junto à N4, durante a manhã, baleando mortalmente na cabeça um dos jovens, lançando gás lacrimogéneo e disparando vários tiros.
“É um feriado normal, ninguém fechou a estrada. De repente aparece o Conselho Municipal e a UIR, começam a disparar sem perguntar nada”, descreveu aos jornalistas da Lusa um dos jovens, de máscara, para se proteger do gás lacrimogéneo que tinha sido lançado há pouco tempo. Garantiu que estavam na rua a limpar e a festejar o “Dia dos Verdadeiros Heróis do Povo Moçambicano”.
Outro jovem explicou que a vítima “não estava a fazer nada”, não se estava a manifestar e foi atingida a tiro “ao sair de casa”. “Eles [polícia] deram logo um tiro na cabeça, a sair, sem perguntar (…) Nós não fizemos nada”, assegurou o jovem.
What for the people of the Casabranca area in Matola would have been a day of celebration ended in tragedy.
The police followed and killed a young man in full view of the press and anyone else who wanted to see.
There are now 361 fatalities pic.twitter.com/XEUtymBA4R— Wilker Dias???????? (@wilkerDias13) March 18, 2025
Passo seguinte, a revolta eclodiu no bairro e transbordou para a N4, com as pessoas a atirarem pedras contra viaturas, incluindo as da polícia e, conta a Lusa, mais tarde tentando vandalizar um espaço comercial, obrigando a nova intervenção policial.